Eduardo Vasco
Sair do BRICS não é uma linha de ação que possa melhorar as relações com os Estados Unidos. Há outras formas de se conseguir fazer isso.
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Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal (STF) condenou o ex-presidente Jair Bolsonaro a 27 anos e três meses de prisão por tentativa de golpe de Estado. Uma grande parcela da sociedade - desde pessoas comuns até políticos e empresários poderosos - denuncia a condenação como arbitrária, em meio à intensificação da polarização política.
O processo contra Bolsonaro foi um dos motivos pelos quais o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, decidiu intervir abertamente na política interna brasileira. Ele impôs tarifas de 50% a todos os produtos e serviços exportados do Brasil aos EUA, mas depois retirou da lista quase metade do valor dessas exportações. Além disso, impôs sanções sustentadas pela Lei Magnitsky a figuras proeminentes do STF, sobretudo ao ministro Alexandre de Moraes.
Essas ações - junto com declarações persistentes de membros influentes do governo americano e da embaixada em Brasília - elevaram a níveis sem precedentes as tensões entre os governos de Brasil e Estados Unidos e podem levar a um desfecho perigoso para o governo Lula, nitidamente o mais frágil nessa relação bilateral.
Para entender as possibilidades de intervenção dos Estados Unidos no Brasil, bem como os interesses americanos no país, a SCF entrevistou Gunther Rudzit, professor de Relações Internacionais na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e especialista em segurança nacional, estratégia e geopolítica.
Logo após a condenação do ex-presidente Bolsonaro, Marco Rubio disse que os EUA darão uma "resposta à altura" à decisão do STF. Antes, a Casa Branca havia sugerido que poderia até mesmo utilizar o poderio militar. O que o senhor acha que os EUA poderão fazer desta vez?
Eu não acredito no uso da força, até porque as relações entre os militares americanos e os brasileiros são muito boas. Eles não querem perder esse contato. Sabem que isso poderia levar ao aumento da influência chinesa no Brasil. Até hoje, os militares brasileiros se opuseram a trocar a tecnologia americana pela chinesa e uma ação como essa poderia levar a uma mudança de postura, por isso eu não acredito no uso da força militar.
Mas outras sanções são possíveis. Por exemplo, a extensão da Lei Magnitsky para os outros ministros do STF que votaram pela condenação do ex-presidente. Ou então novas sobretaxas devido à compra de diesel e fertilizantes da Rússia. No entanto, prever o que ocorrerá é muito difícil, porque isso tudo depende do presidente Trump - e fazer previsões com ele no poder é muito difícil.
Me chamou muito a atenção a postura da Embaixada dos Estados Unidos. Ela nunca havia se intrometido pública e abertamente nos assuntos internos do Brasil, mas agora passou a emitir declarações duríssimas contra as autoridades e instituições brasileiras e a favor do principal opositor do atual governo. O senhor acha que essa postura pública é um indício de que a embaixada também pode estar atuando nos bastidores, de maneira mais concreta do que a mera retórica pública? Ou seja, de que ela pode se envolver em atividades subversivas para realizar os objetivos de Trump, sejam eles políticos ou econômicos?
Desde a redemocratização realmente nunca vimos uma postura tão assertiva da embaixada americana. Antes da redemocratização, esses fatos ocorriam mas não lembramos tanto e não eram tão noticiados. Mas essa postura não deveria espantar ninguém, pois ela condiz com a política de Trump e do secretário Marco Rubio em relação a governos considerados de esquerda.
Contatos com partidos de oposição, principalmente com familiares de Bolsonaro, certamente devem estar ocorrendo. Afinal de contas, o deputado Eduardo Bolsonaro tem contatos diretos com o governo americano nos EUA. Portanto, a embaixada ter esses contatos com o restante da família no Brasil não seria surpresa.
Mas não acho que o governo americano venha a realizar ações subversivas, que são consideradas como parte de uma guerra híbrida.
Em julho, o encarregado de negócios dos EUA se reuniu com membros do Instituto Brasileiro de Mineração para tratar da aquisição de terras raras. Isso gerou uma grande controvérsia pública e o presidente Lula disse que devem estar sob o controle do governo. Quais podem ser as estratégias práticas dos EUA para obter as terras raras do Brasil?
Eu vi essa reunião como uma sinalização do governo americano para o governo brasileiro. Já que os contatos diretos estão interrompidos pela crise em decorrência das ações de Eduardo Bolsonaro, é uma forma que efetivamente a Casa Branca teria de indicar que há caminhos para contornar essa crise.
Porque é sabido que o acesso a reservas de terras raras é um dos principais objetivos e uma necessidade urgente dos EUA para diminuir a dependência que existe em relação à China. Não podemos esquecer que parte da negociação por um possível acordo de paz entre Rússia e Ucrânia, intermediado pela Casa Branca, foram acordos que podem dar acesso a recursos minerais - dentre eles, terras raras - na Ucrânia. E as reservas ucranianas são muito menores que as brasileiras. Portanto, se, efetivamente, o governo brasileiro estivesse buscando um meio de tentar contornar essa crise, aproveitaria esse interesse para, ainda preservando os interesses brasileiros, reaproximar os dois governos.
Há casos em que o governo Trump está apenas dando continuidade, talvez de forma mais contundente, a uma política anterior dos Estados Unidos, como sobre a suposta atuação de grupos terroristas na Tríplice Fronteira. A atividade dos órgãos de inteligência e segurança dos EUA pode ter aumentado naquela região nos últimos tempos, diante dessa escalada de Trump, incluindo através de seu aliado Javier Milei?
O governo Trump passou a classificar narcotraficantes como terroristas porque isso muda legalmente o trato desses grupos dentro da legislação americana. Devido ao Patriotic Act, isso dá uma liberdade muito maior, inclusive de prisão, por parte do governo americano, contra quem é classificado como terrorista ao invés de narcotraficante.
O interesse pelo terrorismo na Tríplice Fronteira realmente é antigo. Em um primeiro momento, após o 11 de setembro, foi aventada a possibilidade de um ataque na Tríplice Fronteira porque é sabido que Osama Bin Laden esteve em Foz do Iguaçu, a partir de imagens que foram encontradas em uma das caveiras de Tora Bora. Há atuação de grupos ligados a organizações consideradas terroristas na Tríplice Fronteira, devido a uma facilidade maior de lavagem de dinheiro, que financia esses grupos no Oriente Médio, por isso o interesse do governo americano na região. Tanto é que alguns indivíduos ligados ao narcotráfico já foram presos no Brasil com a ajuda de órgãos de inteligência dos Estados Unidos.
Não é novidade, portanto. A atuação desses órgãos pode ter aumentado, mas, devido à sua natureza, esse tipo de ação não é repercutido publicamente. O princípio básico de qualquer inteligência é não deixar outros saberem de suas ações. Mas, pela proximidade de Javier Milei com Trump, é possível sim que os órgãos americanos tenham agora uma maior presença na Argentina.
Bolsonaro declarou, no início do ano, que abriria uma base militar dos Estados Unidos no Brasil caso retorne à Presidência da República. O senhor acredita que seria mesmo possível algum governo brasileiro permitir uma base americana dentro do país? Qual seria a reação dos militares brasileiros e do próprio governo dos EUA?
Certamente tanto o governo quanto os militares dos EUA adorariam ter uma presença militar aqui, principalmente perto das fronteiras onde atua o narcotráfico - ou seja, na Amazônia, tanto no seu arco norte quanto no seu arco oeste. Contudo, esse tipo de aceitação pelo governo brasileiro é muitíssimo difícil, se não impossível. Primeiro da parte dos militares brasileiros, que rechaçam veementemente a instalação de bases estrangeiras aqui, e segundo que no Congresso Nacional atual essa aprovação também seria muito difícil.
Eu vejo muito mais como parte da estratégia política do ex-presidente Bolsonaro do que efetivamente algo que possa vir a ser implementado um dia.
Qual o nível de dependência das Forças Armadas brasileiras em relação à tecnologia americana? Parece que o monitoramento da Amazônia, por exemplo, está nas mãos da Starlink.
As Forças Armadas brasileiras - Marinha, Exército e Aeronáutica - têm praticamente total dependência no setor de eletrônica em relação à tecnologia americana, principalmente das empresas privadas americanas. Mas trata-se de uma relação quase estatal, porque por ser um setor estratégico, as exportações dessas tecnologias só podem ser feitas com autorização do governo americano.
Por isso mesmo é que os militares brasileiros, nos últimos dois anos, passaram a buscar meios de reduzir essa dependência - e os europeus da mesma forma. Então, eu diria que há uma dependência muito grande e que hoje isso causa um incômodo entre os militares brasileiros. Qualquer resposta a essa dependência vai depender do aumento do orçamento militar.
Mas, diante da oposição dos militares a uma dependência da China, qual seria a opção à dependência dos Estados Unidos? A construção de tecnologias nacionais?
Em primeiro lugar, sim. Nós temos empresas com capacidade para isso. Mas também desenvolver tecnologia junto com outros países que estão na mesma situação que nós, como a Índia e os países europeus. Mas tudo isso vai depender do aumento dos gastos militares, e na situação atual das contas públicas isso seria bastante difícil.
Alguns anos atrás, o jornalista Bob Fernandes revelou a infiltração do FBI e da DEA na Polícia Federal. A Folha de S.Paulo também já informou sobre a atuação da CIA dentro da PF. Nesse sentido, o senhor avalia que as agências de segurança do Brasil estão vulneráveis a ações desses órgãos americanos em meio a uma escalada intervencionista do governo Trump?
Essa linha entre infiltração e colaboração contratual (por exemplo, para o combate de crimes transnacionais) é difícil de se distinguir. Então é muito difícil afirmar categoricamente o que exatamente é essa atuação estrangeira dentro dos órgãos brasileiros.
Além disso, a maior capacidade de inteligência americana é a NSA. Ela consegue levantar dados por meio eletrônico sem o menor contato humano, como foi revelado por Edward Snowden. Mesmo após o escândalo, não se sabe ainda até onde a atuação da NSA consegue chegar. Talvez o mais sabido seja sobre a espionagem contra a ex-presidente Dilma Rousseff e a Petrobrás - embora os funcionários do governo se recusassem a usar e-mails criptografados disponibilizados pelo exército e mantivessem o uso do Gmail, que qualquer hacker iniciante consegue infiltrar.
O que eu quero dizer com isso é que, quando há um interesse muito grande do governo americano, ele mobiliza tantos recursos que nós nem temos ideia do que ele pode fazer.
Mas, diante de tantos interesses globais americanos, em que posição dessa lista está o Brasil? Quão importante para os EUA é o que está ocorrendo no Brasil, a ponto de desviar recursos que poderiam estar sendo direcionados a outros alvos? Será que o Brasil é tão importante assim para os EUA?
Por último. Bolsonaro também declarou, há alguns meses, que, se voltar à Presidência, irá retirar o Brasil do BRICS. Donald Trump também já deixou claro que considera o BRICS como inimigo. Mesmo que Bolsonaro não possa voltar à Presidência, aliados seus têm possibilidades de vitória. Uma mudança de governo tende a afastar o Brasil do BRICS? Poderia haver um movimento em torno disso, entre diferentes setores da sociedade brasileira?
Os aliados mais próximos de Bolsonaro poderiam tentar. Mas não vejo isso como algo que deveria ser parte da política externa brasileira. Eu tomo como exemplo a Índia. Ela vem sabendo utilizar muito bem a dubiedade em relação aos Estados Unidos. O primeiro-ministro Narendra Modi está dando um show de como se postar diante das pressões do presidente Donald Trump.
Quando o governo americano impôs as novas sanções de 50% pela compra de petróleo da Rússia, o primeiro passo da Índia foi lembrar que quem sugeriu a compra foi justamente o governo americano, a fim de não causar um aumento absurdo nos preços do mercado internacional de petróleo. O segundo passo foi participar da reunião da Organização de Cooperação de Xangai na China, depois de sete anos sem visitar o país. E lá ele passou um recado para a Casa Branca, tirando fotos com Xi Jinping e Putin. Mas, quando a reunião terminou e, um dia depois, houve a parada militar para comemorar os 80 anos da vitória chinesa sobre o Japão, Modi voltou para a Índia e não permaneceu na China. Ele indicou para Trump que a Índia poderia atuar mais próxima da China, mas ao mesmo tempo sinalizou que não é um aliado de Pequim.
E, dentro do BRICS, a Índia vem fazendo isso. Ela tem agido para limitar o máximo que pode a ação da China. A Índia era vista como um freio de mão para as ambições chinesas. Claro que isso tem limites, por exemplo com a aceitação (junto com o Brasil) do aumento do número de países no BRICS. Mas estar nesse grupo não significa ser inimigo dos Estados Unidos. Contudo, estar no grupo e propor a substituição do dólar é ser inimigo dos Estados Unidos.
Portanto, sair do BRICS não vejo que seja uma linha de ação que possa melhorar as relações com os Estados Unidos. Há outras formas de se conseguir fazer isso.