Raphael Machado
Há muitos modelos ou propostas de multipolaridade, mas as mais equilibradas preveem pelo menos um polo para cada continente ou civilização.
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Um dos aspectos fundamentais da ideia de multipolaridade é precisamente que alguns países estariam imbuídos de uma certa responsabilidade histórica de alcançar o patamar de "polos" nessa nova ordem. Ou seja, que alguns países deverão tornar-se centros aglutinadores regionais ou continentais e, com isso, lideranças em um horizonte internacional no qual, por mais que se respeite as soberanias nacionais, um novo realismo impõe a primazia de determinados países que poderiam ser lidos à luz do conceito de "Estado-Civilização", desenvolvido pelo filósofo chinês Zhang Weiwei.
Há muitos modelos ou propostas de multipolaridade, mas as mais equilibradas preveem pelo menos um polo para cada continente ou civilização. Se o lugar da Rússia, China, Índia e EUA é óbvio nesse contexto, algumas outras zonas planetárias têm um destino menos incerto.
O conceito de pseudomorfose de Oswald Spengler ajuda a explicar por que o Brasil, apesar de seu potencial, enfrenta dificuldades para se consolidar como uma potência autônoma. Desde sua formação, o país vive sob o peso de formas culturais e institucionais importadas, que distorcem seu desenvolvimento orgânico e perpetuam uma dependência estrutural. A Europa encontrará o próprio caminho ou ficará a reboque dos EUA? Em que direção a balança penderá no Oriente Médio? Na direção do Irã, da Turquia, da Arábia Saudita ou de Israel? E de que forma a África Subsaariana se reorganizará para encarar o desafio da multipolaridade?
Outro caso é o da América Ibérica, do México à Argentina. Essa região conheceu interessantes projetos geopolíticos, como o capitaneado pelo argentino Juan Domingo Perón em meados do século XX e mais recentemente o bolivariano conduzido pelo venezuelano Hugo Chávez. Mas podemos retroceder no passado para refletir sobre o esforço de Simón Bolívar de manter unidas as repúblicas recém-libertadas de Madri. O projeto imperial brasileiro de unificação com a Argentina. As pretensões regionalistas jamais concretizadas do Império Mexicano. E assim por diante.
Mas entre todas essas hipóteses e possibilidades sempre se destacou a expectativa de que o Brasil desempenharia um papel de liderança pelo menos na América do Sul, e talvez em toda a América Ibérica. O próprio fato de que o Brasil permaneceu unificado após sua independência de Portugal, enquanto a América Espanhola se fragmentou, colocou o país em uma certa situação de vantagem.
No entanto, poderíamos dizer que o Brasil está plenamente preparado para assumir a posição de um dos polos em um mundo multipolar?
Uma afirmativa aqui pareceria duvidosa. O país carece de armas nucleares e possui forças armadas antiquadas e dependentes da doutrina e tecnologia dos EUA, não é autossuficiente economicamente e não é industrializado; ainda pior: no âmbito cultural, acadêmico e mesmo psicológico, o Brasil é integralmente pautado por aquilo que é produzido entre Nova Iorque, Londres e Paris.
Aqui, neste último ponto, talvez tenhamos encontrado uma chave importante para entender as dificuldades brasileiras.
Uma nova ordem multipolar estaria, potencialmente, estruturada ao redor dos chamados Estados-Civilizações, tal como descritos por Zhang Weiwei e repetido por Alexander Dugin, em superação à figura pós-vestfaliana do Estado-nação. E apesar de não ser nossa pretensão aqui definir o que seria, então, uma "civilização", podemos apontar para a necessidade de um horizonte cultural autônomo dotado do seu próprio ritmo de desenvolvimento.
Como o Brasil se sai neste quesito?
Aqui de início devemos rechaçar a noção de que o Brasil seria intrinsecamente ocidental. A realidade é que os portugueses fundaram, com a sua colonização, um "povo novo" (nos termos do teórico brasileiro Darcy Ribeiro) que não é mero transplante do povo português, nem mera soma de elementos portugueses, indígenas e africanos, tampouco mera continuação da civilização pré-colombiana tupi-guarani.
Para todos os efeitos, portanto, essa colonização deveria ter dado início a um processo de evolução cultural próprio, especialmente a partir da Independência do país em 1822.
O problema é que nada disso aconteceu. A classe intelectual brasileira ao longo do século XIX tomou como referência a França e passou a importar todas as suas tendências. Mas a França do século XIX, particularmente pós-Napoleão, já era um país em vias de decadência, um país que avançava de forma acelerada no caminho de autonegação pavimentado pelo Iluminismo.
Aqui não se está criticando a recepção de influências estrangeiras, já que todos os povos e culturas se desenvolvem absorvendo e adaptando influxos vindos de outras regiões.
O que aconteceu com o Brasil, porém, é que sobre uma protocultura primaveril foi acoplada a cultura de um Ocidente já invertido e decaído: positivismo, materialismo, freudismo, relativismo - o Brasil mal havia nascido e já recebia as construções tardias de uma civilização europeia cansada e "virada de cabeça para baixo" pela Revolução Francesa.
Esse tipo de fenômeno é chamado de "pseudomorfose" pelo filósofo alemão Oswald Spengler. Segundo Spengler, a pseudomorfose era um fenômeno que acometia certas culturas jovens que, por determinadas circunstâncias, eram sobrepujadas por culturas mais maduras a ponto de perderem a capacidade de crescer por conta própria e realizar seu próprio potencial. A pseudomorfose é como um cabresto cultural que constrange e comprime culturas jovens e férteis a seguirem os passos de civilizações envelhecidas e calcificadas.
É por isso que sem ter passado realmente por um auge e sem ter realizado o seu próprio potencial, o Brasil já sofre com todas as manifestações e sintomas da decadência ocidental. Uma piada diz que o Brasil é um país com "infraestrutura do Haiti e progressismo da Suécia". Parcialmente um exagero. Parcialmente.
Interessantemente, segundo Spengler a Rússia também havia sido vítima de uma pseudomorfose. Sendo uma cultura potencialmente original, ela havia sido "ocidentalizada" de cima para baixo, praticamente à força, a partir de Pedro o Grande. Boa parte das tensões intelectuais e artísticas da Rússia ao longo do século XIX e XX tiveram que ver com a disputa entre tendências ocidentalizantes (usualmente uma influência especificamente francesa) e tendências eurasiáticas. Em certo sentido, o que vemos nos últimos anos do governo Putin é, precisamente, uma retomada da Rússia-Eurásia como projeto civilizacional autônomo, em superação à pseudomorfose que vitimou a Rússia no passado.
O Brasil também viu essa pseudomorfose espalhando-se a partir do final do século XVIII e início do XIX, com a difusão do Iluminismo em nosso país. A partir de então, Paris passou a ser o referencial civilizacional do Brasil e o Império não foi capaz de oferecer um projeto alternativo. Os intelectuais da época tampouco foram capazes de se mobilizar culturalmente de uma maneira análoga aos intelectuais eurasianistas e eslavófilos russos.
Apenas nos anos 20, 30 e 40 do século XX - com a "Semana de Arte Moderna", a "Revolução de 30" e o "Estado Novo", o "integralismo", a revista "Cultura Política", etc. - o Brasil esteve diante de tendências que visavam repensar o Brasil de uma maneira mais autônoma, como propriamente uma civilização ou como o coração de uma civilização ibero-americana, nem europeia, nem africana, nem indígena.
A aliança com os EUA, porém, afastou uma vez mais essa possibilidade, reforçando a pseudomorfose. Nosso referencial deixou de ser Paris e passou a ser Nova Iorque.
Como um país pode, porém, se livrar desse dilema? A tarefa é necessária, porque as ações de um país serão ditadas pela fisionomia de sua cultura. Mas ela nem por isso é simples. É uma tarefa que cabe à classe intelectual, a eterna responsável por desbravar as selvas do espírito.
Até que o Brasil encare esse desafio permanecerá tendo dificuldade de reivindicar um papel de protagonismo numa ordem mundial multipolar.